26 de novembro de 2009

Calor

O que levaria alguém, já com mais de 40 anos e uma bem sucedida carreira como editor em revistas nas costas, a se meter vários dias por semana em um buraco apertado e quente, para trabalhar como escravo de um chef de cozinha? O convite para tentar descobrir a resposta parece estar latente ao longo de todo o livro “Calor”, do jornalista nova-iorquino Bill Buford – o escravo em questão.

Publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2007, o livro é um relato franco e bem humorado das agruras da vida na cozinha profissional de um grande restaurante. E, sobretudo, das agruras sofridas pelo cozinheiro iniciante. Eu já havia lido o livro na época do lançamento, mas recentemente decidi retomá-lo e (re)descobri ali uma pletora de boas sacadas (observações, descrições, análises) para aqueles que, como Buford, decidiram botar os dois pés nesse mundinho.

Editor de literatura de ficção da revista “New Yorker” há oito anos, ex-editor da afamada revista literária “Granta” e autor de um livro de sucesso (“Entre os vândalos”, de 92), Buford bem poderia ter se deitado sobre os louros de uma carreira jornalística bem sucedida, quando cismou de trabalhar na cozinha do estrelado Babbo.

O impulso inicial veio através da própria “New Yorker”, sob a forma de um perfil encomendado do superlativo chef Mario Batali. Mas foi a paixão por aquilo que Buford – até ali apenas um cozinheiro de fim de semana – entendia ser a gastronomia, somada ao fascínio exercido pela figura de Batali, que o empurrou de vez para dentro do “buraco”.

O que poderia ser, então, apenas um livro biográfico sobre uma personalidade famosa e excêntrica acabou se tornado, felizmente, muito mais: um despretensioso inventário de experiências (muitas vezes risíveis, outras vezes assustadoras, em sua maioria, invejáveis) de um novato excessivamente empolgado em um ambiente que (ainda) não é o seu, muito bem amarrado pela apresentação do peculiar contexto sócio-cultural que as cerca.

Buford é extremamente feliz ao intercalar o relato de suas próprias aventuras não apenas com histórias sobre o processo de formação profissional de Mario Battali – ou de outro grande nome, Marco Pierre White – mas também com um pouco das trajetórias daqueles profissionais invisíveis que formam a brigada de cozinha.

No livro, chefs executivos, sub-chefs, cozinheiros e auxiliares têm, cada um, um nome e uma história particular – que pode ter a ver tanto com a formação em uma boa escola de gastronomia e a subsequente frustração de passar mais de ano sem o direito de encostar no fogão, quanto com o “destino” inescapável de tornar-se um cozinheiro de boa mão, pelo simples fato de se ter nascido na cidade mexicana de onde (supostamente) vêm os melhores auxiliares em atividade em Nova Iorque.

Foi no meio destes profissionais invisíveis que Buford cruzou a fronteira, tornando-se, de fato, um cozinheiro. A boa narrativa dos altos e baixos enfrentados durante o processo – dedos quase decepados, uniformes em chamas, broncas públicas do chef e, para compensar, também belas demonstrações de camaradagem – diverte e, ao mesmo tempo, ajuda a apresentar em tintas mais reais um universo intensamente mitificado por aqueles que não fazem parte dele. E para os que fazem parte, tem a reconfortante qualidade de nos mostrar que as pequenas dificuldades e alegrias de cada um, no fundo, no fundo, são quase sempre muito parecidas.

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