23 de fevereiro de 2010

Reproduzir vs compreender uma receita



Acabo de ler dois artigos do Carlos Dória, postados em seu blog (http://ebocalivre.blogspot.com/2010/02/aprender-cozinhar-uns-poucos-livros.html e http://ebocalivre.blogspot.com/2010/02/aprender-cozinhar-reflexoes-de-um.html), sobre a importância relativa das receitas no processo de aprendizado do cozinheiro. Pelos comentários já postados, o tema vai reverberar bastante...Torço para isso, porque a polêmica é boa.

Por coincidência, há pouco mais de uma semana tenho refletido com os botões do meu jaleco sobre uma questão que guarda muitos pontos de contato aquela: a postura adotada por muitos cozinheiros profissionais de meros executores (ou repetidores) das receitas de seus restaurantes.

Aí o leitor vai me perguntar: ora, mas não é exatamente isso que se espera de um cozinheiro? Que seja um bom executor das receitas que lhe cabem dentro do cardápio do estabelecimento em que atua? Se este estabelecimento conta com um chef de cozinha, não é a este que caberia o trabalho propriamente criativo, de desenvolvimento de novas receitas, enquanto a seus subordinados recai somente a exigência da boa execução. Sim. E não.

 Cozinha profissional, claro, é produção em série. Os cozinheiros são como operários de umaslinha de montagem, aos quais cabe reproduzir dia após dia, e várias vezes ao longo de cada turno, os elementos que compõe cada prato e que estão sob sua responsabilidade. Nesse sentido, eles devem ser exímios executores, reprodutores de fórmulas pré-fixadas nas fichas técnicas do restaurante.

 Mas no momento atual em que se encontra nossa gastronomia, creio que diminui cada vez mais o espaço para os cozinheiros que se restringem a isso.   E é aí que entra a discussão iniciada por Dória. Receitas, como escreveu ele, "são anotações sobre o processo de transformação ou, como escreveu Bocuse, o registro de certas 'proporções'". É somente  esta leitura superficial - e que dá margem apenas para a cópia - que conseguirá fazer o cozinheiro menos instruído ou ambicioso.

 Há muito mais em uma receita ou ficha técnica profissional, contudo. É preciso compreender o sistema culinário subjacente, bem como as técnicas de transformação ali presentes, para se empreender uma leitura mais profunda. (Quando falo em "sistema culinário", penso em uma  "gramática" de cozinha culturalmente conformada, que engloba ingredientes, utensílios, técnicas e princípios de sabor - tal como definido por Paul Rozin - preferenciais.) 


É essa leitura mais profunda, capaz de entender o porquê de cada etapa daquele passo-a-passo - isto é, a relação de causa e efeito presente na opção por uma determinada técnica em detrimento de outra (cozinhar uma carne em panela tampada, com a presença de líquido, ao invés de assá-la em tabuleiro, no forno, por exemplo), de um determinado utensílio, em detrimento de outro, e por aí vai - o que permitirá ao cozinheiro "desconstruir" aquela receita, "meter seu dedinho" e modificá-la com conhecimento de causa. É a compreensão técnica, em especial, que permitirá fazer substituições no meio do processo,com um relativo controle sobre os resultados. 

Carlos Dória e Alex Atala debruçaram-se sobre esse mesmo tema no livro Com unhas, dentes e cuca (Ed. Senac São Paulo, 2008). No capítulo "O que é executar uma receita", eles escrevem que "Mais do que fórmulas [como são entendidas ali as receitas], o que um cozinheiro precisa aprender e praticar são  procedimentos. Mais do que fórmulas, ele precisa conhecer a cultura à qual determinado modo de fazer se vincula. Aprender a montar uma mousse ou a fazer uma emulsão; saber o que se passa dentro da panela quando fritamos uma carne; saber o que se passa no suflê dentro do forno; conhecer as propriedades das gorduras ou dos amidos durante sua preparação e nas papilas gustativas. Essas e tantas outras são as verdadeiras questões colocadas diante de um cozinheiro antes mesmo de se pensar em uma receita ou na proporção entre os elementos que compõem o prato."

Concordo inteiramente com essas palavras, embora também acredite que um livro de receitas possa ser útil, como um primeiro caminho, para o cozinheiro iniciante. Para o profissional, no entanto, é preciso ir além. E em especial em um domínio como a confeitaria, em que não se substituem ingredientes ou alteram-se medidas impunemente. Somente com um bom nível de conhecimento técnico é possível ali fazer alterações em uma receita original, com controle sobre o produto final.  

Infelizmente, tenho visto muitos profissionais acomodando-se na função de executores. Não admira que estes, quase sempre, permaneçam anos no mesmo cargo hierárquico (quando não também na mesma praça). Há méritos em ser um exímio executor? Sem dúvida! Mas somente consegue evoluir dentro da cozinha, e na profissão, aquele que, além disso, também consegue compreender as entranhas da gastronomia que pratica.

fotos: Keiko Oikawa - http://www.nordljus.co.uk

Um comentário:

  1. Patrícia,

    Concordo contigo em gênero, número e grau! Acompanho há cinco anos o trabalho do Alex e do Dória... toda a construção deles (teórica/prática) é muito consistente e, principalmente, IMPORTANTE para que possamos pensar em GASTRONOMIA no Brasil!!! Como fui professora em curso de gastronomia... sei da importância de (re)pensarmos o papel das receitas na formação desses profissionais!!!
    Aparece no meu blog... acho que vais gostar.. (assim espero!!!)
    www.comidafala.blogspot.com
    Abraços
    Karen

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