21 de outubro de 2009

Perdido na tradução

Alguns anos atrás, escutei uma história que me pareceu paradigmática quanto ao descompasso que pode haver entre pessoas de culturas distintas. Uma amiga carioca se propusera a receber em casa um rapaz japonês que vinha pela primeira vez ao Brasil. Tratava-se de um favor a um grande amigo seu, que havia se mudado para o Japão e precisava indicar um pouso barato, seguro e confortável para um conhecido em viagem por terras tropicais. Takuji era o nome do rapaz.  Foi muito bem recomendado e, de fato, não causou maiores desconfortos à família que o recebeu, durante os quinze dias em que esteve no Rio de Janeiro.
 

A história teria passado em brancas nuvens não fosse a enorme gentileza do rapaz, já na véspera de ir embora. Como retribuição à hospitalidade com que fora recebido, Takuji se ofereceu para preparar o último jantar que compartilharia com a família brasileira  um jantar à moda japonesa. 

O resultado foi farto e preparado com esmero, mas a descrição apresentada anos depois por minha amiga não deixa dúvidas quanto à impressão que o cardápio causou: arroz “empapado e sem sal”, uma mistura de amêndoas com pedaços de frango acompanhados de um creme indiscernível (“horrível e também sem sal!”), sopa de missô com inhame (“que era o melhor”), uma pasta de mandioca com peixe (estranhamente servida em um pedacinho de madeira), tudo isso acompanhado de saquê. “Eu, particularmente, detestei”, contou-me ela, “e o comentário geral da minha família foi o mesmo”. Não por acaso, Takuji também havia achado a comida brasileira excessivamente salgada - ou excessivamente doce.

Uma avaliação apressada do caso levaria a pensar que se trata, apenas, de incompatibilidades de gosto, facilmente solucionáveis com mais uma pitada de sal aqui, menos uma colher de açúcar ali. Mas será que as diferenças culturais relacionadas à alimentação se restringem ao nível do paladar? E se, de fato, essa dimensão não pode ser negligenciada, será que não convém nos perguntarmos o que é que fundamenta este paladar?


Estranhamentos como o relatado são comuns entre pessoas de culturas diferentes. Na alimentação, particularmente, hábitos e práticas arraigados são visíveis o suficiente para permitir a qualquer um a constatação empírica do fosso cultural. Quem, ao viajar para outro país, nunca se deparou com a incômoda situação de sentar à mesa de um restaurante e ter de escolher entre uma série de opções de pratos que parecem inadequados ou pouco apetitosos, na melhor das hipóteses, e simplesmente inaceitáveis, na pior delas?


A diferença de língua que se apresenta, nesses casos, como o primeiro obstáculo a ser vencido – de outro modo não há como compreender o cardápio, fazer uma escolha e solicitá-la ao garçom – é de fato apenas um deles. O confronto com uma série de outras linguagens desconhecidas aguarda pelo visitante durante sua estadia, e a alimentação está entre elas. O desgosto sentido por minha amiga ao ser apresentada ao jantar preparado por seu hóspede, assim como a angústia experimentada pelo comensal em terra estrangeira, podem ser pensados como a desconfortável comprovação de que algo “se perdeu na tradução”.  


A alimentação, em qualquer lugar que se vá, tem também sua “gramática” particular, e essa gramática nos fala muito da cultura desse mesmo lugar.

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