21 de abril de 2010

Alguns apontamentos sobre a formação do gosto - parte II

Dando continuidade ao post anterior - em que apresentei trechos de dois trabalhos meus, contendo brevíssimas revisões de linhas teóricas relativas à questão da formação cultural do gosto -, apresento abaixo uma rápida exposição sobre a proposta do sociólogo Antoine Hennion. 

Os trabalhos de Hennion fornecem uma perspectiva inovadora; não obstante, permanecem.desconhecidos da maioria dos interessados no estudo sócio-antropológico da alimentação. Alguns de seus artigos (em inglês e francês) chegaram a mim após o término do meu mestrado, através da colega antropóloga Heloísa Gravina, pesquisadora na área de performance, em que o sociólogo é referência.  Até então, eu havia encontrado pouquísssimo material diretamente ligado a esse interesse investigativo, sendo "La Distintion", de Bourdieu, um dos principais. 

Embora houvesse me fascinado enormemente em uma primeira leitura, subsequentemente a obra de Bourdieu acabou me gerando mais dúvidas (e desconfianças no que tange a suas explicações sobre a alimentação) do que uma base de apoio, e assim as referências a ela acabaram quase que totalmente excluídas da minha dissertação.

Embora eu considere que compreenda, ainda, apenas parcialmente a proposta de Hennion, ela se "encaixou" nas minhas conviccções teóricas em muitos pontos em que a teoria bourdiana não encaixava, e acabou suscitando a revisão de dados de pesquisa presente no artigo do qual o texto abaixo é um  excerto ("A experiência sensorial na degustação de vinhos: treinamento dos sentidos, discurso e construção de gosto", Grupo de Trabalho de Alimentação, Reunião de Antropologia do Mercosul, 2007).

Enfim, para quem se interessa pelo tema do gosto, acho que vale conhecer essa proposta. 

 
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Uma outra proposta para a definição do gosto

Partindo de pesquisas realizadas no universo dos amantes de música, Antoine Hennion busca  especialmente no texto Pour une pragmatique du goût, ao qual mais diretamente nos reportamos aqui  “retomar os problemas colocados para a sociologia da cultura pela questão do gosto” (Hennion, 2005: p.1) a partir da proposição de uma nova concepção crítica. Reconhecendo o gosto como “uma modalidade problemática de ligação com o mundo” (Hennion, 2005: p.1), ele se pergunta como seria possível assimilar certos aspectos trazidos pela disciplina – como o caráter sobredeterminado dos gostos, sua função de marcadores de diferenças sociais, seu funcionamento ritualizado – sem com isso reduzir as práticas reais aos determinismos sociais.

Hennion reconhece a importância da introdução das práticas culturais e dos gostos em um mundo real, caracterizado tanto por possibilidades quanto por constrangimentos, e seu relacionamento a circunstâncias e condições materiais, econômicas, técnicas e institucionais. Mas, considerando o universo social mais restrito dos hobbies e amadorismos, em meio ao qual seus informantes se situam, ele está particularmente interessado em propor uma definição do gosto que seja capaz de ressaltar o caráter ativo e produtivo das atividades empreendidas pelos amadores e, assim, reconhecer a importância de seus procedimentos, suas competências e seus objetos de interesse específicos1. À imagem dos amadores como sujeitos passivos, meros reprodutores de uma ordem existente e ignorantes dos verdadeiros determinantes de seus gostos,  Hennion propõe a de sujeitos ativos, também capazes de transformar e criar gostos, sensibilidades, performances e objetos de apreciação.

Para empreender a mudança de perspectiva proposta pelo autor é necessário, antes de mais nada, colocar como objeto principal de análise não somente o contexto social em meio ao qual se dá a atividade observada, e não os objetos do gosto ou os sujeitos do gosto enquanto instâncias apartadas e autônomas, mas a sensibilidade específica que os relaciona, quer se trate de um modo de escutar, de olhar ou de degustar.

O que interessa ao sociólogo é, portanto, o gosto enquanto um “ato de apreciação”, uma “atividade performática” empreendida pelos amadores. Como tal, esse gosto encontra-se consubstanciado em seus corpos, na medida em que eles são produzidos em suas competências e habilidades específicas pela atividade continuamente realizada.  Mas não basta ao pesquisador deitar seu olhar sobre o amador. Considerando que a atividade amadora compreende também um coletivo, um conjunto de dispositivos materiais e discursivos, modos de fazer, um vocabulário especializado, treinamentos e suportes concretos, é preciso debruçar-se sobre cada uma dessas instâncias mediadoras, assim como sobre a própria apreciação, para buscar compreender como são produzidos concomitantemente a sensibilidade para a apreciação e os objetos apreciados. 

“A música se faz, ela faz seu mundo e seus ouvintes, e ela só pode ser medida através do que ela faz” (Hennion, 2005: p.4). Trata-se verdadeiramente de um processo de co-formação: os  objetos da apreciação ajudam a moldar a aptidão para apreciar do amador, que por sua vez produz, através de sua atividade, e com o apoio do coletivo e dos dispositivos empregados, os objetos da apreciação e, de modo mais geral, a moldura coletiva que permite a esta atividade se desenvolver.

A proposta metodológica de Hennion demanda, portanto, a observação privilegiada das condições concretas em que se dá a atividade performática, dos modos de atuação do coletivo, de cada um dos dispositivos empregados, das inúmeras mediações, enfim, de modo que se possa acompanhar como os corpos, os objetos, as linguagens, os escritos, as maneiras de apreciar circulam, produzindo simultaneamente objetos qualificados e  um público apto e desejoso de lhes apreciar.  

Desse modo, é proposta uma via alternativa tanto às interpretações lineares ou “naturais”, segundo as quais o gosto vem das próprias coisas, quanto às interpretações circulares, culturais, segundo às quais os objetos são meramente aquilo que fazemos deles.

Olhar diretamente para o processo de produção do gosto, através do trabalho ativo empreendido por seus atores, resulta, portanto, em tomá-lo como atividade eminentemente reflexiva, coletiva e situada no corpo. Sob esta ótica, o gosto não representa jamais a constatação ou expressão de uma realidade dada, mas é o resultado de um processo contínuo de elaboração coletiva.

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