10 de maio de 2010

Incrivelmente nojento & extremamente podre


Está prometida para o segundo semestre deste ano a publicação no Brasil, pela Rocco, do livro Eating Animals, de Jonathan Safran Foer.

 Para quem esse nome não diz muita coisa, é bom saber que Foer é um dos mais badalados autores da literatura norte-americana contemporânea, responsável por best-sellers como Tudo se ilumina e Extremamente alto & incrivelmente perto. Entre outros prêmios, ele já recebeu o Guardian First Book Award (concedido pelo jornal britânico The Guardian), e foi elencado na relação de "homens do ano" pelas revistas Esquire e Rolling Stone. E ele só tem trinta e poucos anos.

Para os nossos propósitos aqui, interessa mais ainda saber que Foer sempre se definiu como um vegetariano, mesmo quando ainda comia carne. Na realidade, desde os dez anos de idade ele tem sido um “vegetariano ocasional”, que se sentia em dúvidas quanto ao fato de comer carne - até tornar-se pai e ver-se obrigado a refletir mais seriamente sobre o assunto. Dessa reflexão nasceu Eating Animals, uma ousada investigação a respeito de como a carne que comemos é produzida.

O relato é contundente, a julgar pelos trechos publicados pela revista Galileu do mês passado (o número tem Alex Atala como editor convidado e vale o que se paga, não apenas pelo artigo exclusivo escrito por Foer, mas por várias outras matérias a respeito de alimentação). Em descrições sem meias palavras, podemos entrever os bastidores da indústria que transforma galinhas, leitões e bois de seres vivos em comida humana e as sérias questões que este processo nos coloca em termos de maus-tratos aos animais, sanidade alimentar, ecologia e economia globais.

(Aliás, vale lembrar que, seguindo um interesse investigativo bastante similar, há um outro livro muito bom já publicado no Brasil: O dilema do Onívoro, de Michael Pollan).

Antes que algum gourmet me aponte o dedo: não, trazendo este assunto aqui não estou necessariamente defendendo o vegetarianismo - eu mesma gosto muito de comer carne. Mas, como Foer, há algum tempo sou uma comedora meio culpada e que acha que é preciso sim buscar saber de onde realmente vem aquilo que ingerimos (independentemente se se trata de carne bovina ou tomates) e, mais ainda, compreender a produção alimentar como um grande sistema que, se mal estruturado e gerido, pode trazer (e vem trazendo) graves malefícios ao planeta como um todo.

Então, em prol da divulgação de informação e do levantamento de questões fundamentais para nós gastrônomos pensarmos, reproduzo abaixo o artigo de Foer na revista Galileu de abril deste ano.

Obs.: Os trechos de Eating Animals aparecem abaixo em itálico; o artigo de Foer aparece em fonte normal.

*  *  *

“Tente visualizar... (É improvável que algum dia você chegue a ver em pessoa o interior de uma granja.) Pegue um pedaço de papel sulfite e imagine uma ave adulta, com formato semelhante ao de uma bola de futebol americano com patas, de pé sobre a folha de papel. Imagine 33 mil desses retângulos numa grade. Agora coloque a grade dentro de paredes sem janelas e um ventilador no teto. Insira nesse cenário sistemas de alimentação (guarnecida com drogas), água, aquecimento e ventilação. Isso é uma fazenda.

Estudos científicos sugerem que virtualmente todas as galinhas (mais de 95%) tornam-se infectadas com a bactéria E. coli (indicador de contaminação fecal) e entre 39% e 75% das que chegam ao varejo ainda estão contaminadas.” 

Foi muito difícil parar de comer carne. Para algumas pessoas é fácil, elas tomam a decisão e pronto. Para mim, foram anos de dúvidas atrozes. Um dos meus grandes problemas é que eu simplesmente adoro o gosto da carne. E isso tem a ver com as representações culturais da comida. Os alimentos transmitem amor, valores, histórias. Nossas refeições alimentam e ajudam a lembrar. Comer e o ato de contar histórias são inseparáveis – a água salgada também são lágrimas; o mel não só é doce, mas nos faz pensar na doçura. Por isso, sentar à mesa sempre foi algo muito importante para mim.

Desde que descobri que o frango no meu prato era uma galinha morta, nunca mais aceitei bem o fato de machucar os bichos para comê-los. Mas não conseguia ser muito contundente em relação a isso. Aí aconteceu uma revolução na minha vida: tive um filho. E percebi que podia escolher contar a ele outras histórias sobre os alimentos, diferente das minhas. Porque nutrir meu filho não é como me nutrir: é mais importante. Importa porque comida é importante e porque as histórias que são servidas com ela também são. Decidi, então, ver de onde vinham minhas refeições. E fui buscar a questão que mais me incomodava, os animais.

Capítulo 1 - A náusea

“A próxima vez que um amigo tiver um ‘resfriado’ repentino, faça algumas perguntas. A doença foi uma dessas que vêm e vão rápido – vomitadas ou defecadas e então aliviadas? O diagnóstico não é simples, mas, se a resposta for sim, seu amigo provavelmente não ‘pegou uma virose’, ele ‘comeu uma virose’ que tem todas as chances de ter sido criada pelas fazendas industriais.”

A coisa mais interessante sobre a pecuária nos EUA hoje é que não há absolutamente nada de bom a ser dito sobre ela. As fazendas industriais são responsáveis pela morte anual de cerca de 450 bilhões de animais terrestres e têm uma contribuição 40% maior para o aquecimento global que todo o transporte do planeta reunido. São a causa número um da mudança climática. Ou seja, de qualquer ângulo, elas são péssimas. Se alguém escolher apenas um desses argumentos para recusar a criação moderna de animais, ele será mais que suficiente.

Além disso, comemos animais doentes. Frangos e perus são criados em espaços minúsculos, sem a mínima condição de locomoção. Porcos nascem deformados e precisam ficar presos para não atacarem uns aos outros. Peixes criados em tanques podem tornar-se canibais. Grande parte do gado é retalhada e desmembrada enquanto ainda está consciente. Nosso sustento vem da miséria. Se alguém nos oferecer um filme sobre como nossa carne é produzida, ele será de terror.

Mesmo assim, o que mais me impressionou durante os quase três anos que passei escrevendo o livro não foi nenhuma das cenas horríveis que presenciei. Foi a constatação de que elas não são as exceções, mas a regra. Nos EUA, 99,9% dos animais são criados em fazendas industriais, onde essas imagens são rotina. Isso foi o mais assustador. Como a maioria das pessoas, eu sabia que esse tipo de criação não era boa. O que não sabia é que todas as vezes que compro algo no supermercado ou que pago a conta do restaurante estou pagando por um animal criado dessa forma. Isso é tão grave que nenhum dos grandes produtores de carne me deixou entrar em suas fazendas.

Entrei em contato com todos e não houve um que me abrisse as portas. Para ver como realmente são os frangos e perus que vão para minha geladeira precisei invadir as propriedades no meio da noite, como um bandido. E a visão daqueles bichos empilhados é, realmente, terrível. Até hoje a grande indústria permanece silenciosa sobre o que escrevi.

Por tudo isso, tornei-me vegetariano e escolhi alimentar meu filho da mesma forma. O vegetarianismo é a única forma de comer coerente com tudo o mais que ensino a ele. Não consigo lhe dizer “olha, filho, sabe aqueles animaizinhos que estão nos livros que lemos pra você à noite? Então, na verdade, a gente mata todos eles, arranca a cabeça, coloca na churrasqueira e depois come, viu?”. Não falo de certo ou errado, mas simplesmente não tem nada a ver com os meus valores.

Capítulo 2 - Desastre global

“Então as galinhas vão para um tanque de água refrigerada, onde milhares de aves são resfriadas juntas. A água nesses tanques foi convenientemente nomeada ‘sopa fecal’. Pela imersão de aves limpas e saudáveis no mesmo tanque das sujas, você está assegurando a contaminação.”

Sei que é inviável que todos deixem de comer carne. Essa não é a solução. Também fui a fazendas onde os animais são bem tratados, bem alimentados e abatidos, e não posso ser contra quem come esse tipo de bicho. Mas essas fazendas nunca irão alimentar o mundo. Elas sempre serão exceções, ainda mais em um mundo de quase 7 bilhões de pessoas. Muitos se distraem com questões filosóficas, se é certo ou errado comer animais ou como faríamos uma pecuária ética. Mas isso não é nada prático. Vivemos em um mundo lotado de gente que quer comer muito bife. E não há nenhuma maneira de responder a esse desejo que não seja destruindo o meio ambiente e sendo violento com os animais.

Mas, por outro lado, precisamos desesperadamente encontrar um jeito mais sustentável de produção. E as pessoas precisam comer muito menos. Nos EUA, o consumo de frango aumentou 150 vezes em 80 anos. Essa abundância, combinada com a destruição ambiental, não pode ser ignorada. Mas ainda não encontramos um modelo para solução. O grande problema é que a maioria vê na discussão as alternativas: comer ou não comer carne. E há inúmeras opções entre esses dois polos.

Muitas pessoas se preocupam com a questão do meio ambiente e dos maus-tratos a animais, mas nem cogitam ser vegetarianas. E, veja só, se toda a população dos Estados Unidos decidir não comer carne apenas uma vez por semana, isso seria o equivalente a tirar 5 milhões de carros das ruas. Pequenas ações como essas são, realmente, importantes. Gestos como escolher o que vai para a lista do supermercado ou quais ingredientes pedir do cardápio podem começar a mudar o mundo. Não é necessário tirar os animais da dieta.

Capítulo 3 - Uma sopa de fezes

“Os animais criados nas fazendas industriais produzem 130 vezes mais excrementos que a população humana – nos EUA, são cerca de 40 mil quilos de merda por segundo.”

Sou absolutamente contra o argumento de que comer carne é da natureza humana. Não acredito que, só porque a humanidade comeu outros animais por longo tempo, deveríamos continuar assim. O progresso só se dá quando transcendemos a natureza. Cada livro escrito é uma forma de transcendê-la, o fato de falarmos pelo telefone ou de não sairmos esmurrando os outros também. E podermos escolher agir de acordo com o que não é natural é algo essencialmente humano. Deixar de comer outros animais nos faz também mais homens.

Afinal, existiram épocas e lugares em que os humanos comeram insetos, bichos de estimação ou outros humanos. Esses limites, geralmente, são arbitrários. Tornei-me vegetariano, mas não acho que seja o único caminho. As pessoas precisam comer de acordo com seus valores. Se fizessem isso, a maioria deixaria de comer carne. E se todos souberem o que realmente está acontecendo, se virem como os animais se tornam comida, quem sabe deixar de comer carne não seja mais apenas uma exceção?

E mais três verdades inconvenientes no prato:

1 -“Sem piadas aqui, e sem desviar do assunto: os animais são sangrados, pelados e desmembrados enquanto estão conscientes. Isso acontece o tempo todo, e a indústria e o governo dos EUA sabem disso. Muitos estabelecimentos intimados por retirar o sangue e o couro e desmembrar animais vivos defenderam suas ações como algo comum na indústria e perguntaram, talvez com razão, por que tinham sido selecionados.”

2 - “Uma fonte maior de sofrimento para salmão e outros peixes criados em cativeiro é a presença abundante de piolhos-do-mar, que crescem em águas sujas. Esses piolhos criam lesões abertas e às vezes corroem até os ossos da face dos peixes – um fenômeno tão comum que é conhecido como a 'coroa da morte' na indústria. Um único salmão criado em cativeiro gera uma multidão de piolhos-do-mar em quantidades 30 mil vezes superiores ao que ocorreria naturalmente.”

3 - “Quanto mais cedo os leitões se alimentam de sólidos, mais cedo alcançam o peso de mercado. 'Comida sólida' frequentemente inclui plasma sanguíneo seco, um produto secundário dos abatedouros. (Isso fere a mucosa de seu trato gastrintestinal.) Os porcos desmamados serão, então, forçados para dentro de gaiolas de metal. Essas 'creches' são empilhadas, e fezes e urina caem das gaiolas superiores nos animais de baixo. Os criadores vão deixar os leitões ali antes de movê-los para seu destino: cercados apertados. Sem espaço para se mover, os bichos queimam poucas calorias e engordam mais com menos comida.” 

*  *  *

Um outro trecho do livro pode ser encontado em http://veganbr.wordpress.com/2010/03/19/um-trecho-do-livro-eating-animals-de-jonathan-safran-foer/

2 comentários:

  1. Ui...terrível! É realmente de se pensar sobre o assunto..E aí? já te decidiu? eu venho pensando nisso há muito tempo...mas é difícil, né? beijos

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  2. ping!

    obrigado pelo link.

    Alex Avancini
    veganbr.wordpress.com

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