9 de setembro de 2010

Herança culinária e as bases da gastronomia molecular

Construir uma refeição? Não bastaria produzir um conjunto de pratos escolhidos do repertório clássico? Sim, mas por que repetir? Este livro não vai tratar da reinvenção completa da cozinha: detém-se no estágio em que a construção de uma refeição permite questionamentos. Questões, maravilhosas questões! Não são elas promessas de respostas? Convites para ir mais adiante, em vez de contentar-se com o que se tem? Não são elas os germes da descoberta e da invenção? (p.21)

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Tradicional é aquilo que se transmite, diz a etimologia, mas se, desde muito jovens, formos expostos aos novos métodos, o tradicional dos outros será o obsoleto para nós, enquanto o nosso tradicional pode tornar-se o inovador para nossos vizinhos. Desconfiemos, pois, do “tradicional”.(p.28)

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Proporcionar felicidade aos outros? É algo difícil que devemos aprender a fazer: há muito trabalho pela frente. A arte? Alguns contestam que ela possa existir na cozinha, porque não compreenderam do que se trata. Observe-se, primeiro, que se pode fazer comida para uma, para dez, para cem ou para mil pessoas, reproduzindo os pratos de sempre da cozinha francesa: cassoulet, chucrute, cordeiro à moda da Alsácia (baeckeofe), sopa de peixe com açafrão (bourride), fogaça ou mesmo filé de costela com fritas, omelete de queijo, ossobuco... O cozinheiro é, então, aquele que reproduz um objeto clássico, conhecido, e eventualmente o modifica um pouco. É artesanato. 

E, depois, há os cozinheiros “inspirados”, que sonham com iguarias que não existem e utilizam os alimentos para fazer deles obras que vão exprimir um sentimento, suscitar uma emoção. O objetivo deles não é encher a barriga de seus hóspedes: fazem arte culinária. (…) a arte culinária não é fazer belos pratos, com um pequeno ramo de salsa ao lado, uma gota de molho em forma de vírgula em um canto do prato, um monte de ingredientes escolhidos pela forma ou pela cor. Tudo isso é apenas aparência; a cozinha é antes de tudo, o gosto. (pp.162-163)

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Os trechos acima foram retirados do livro Herança culinária e as bases da gastronomia molecular, de Hervé This e Marie-Odile Monchicourt, publicado em português pela Editora Senac São Paulo em 2009. Eu os escolhi para abrir este post porque, reunidos, os três fragmentos me parecem traçar um retrato sintético da perspectiva conceitual e analítica do Sr. This ― mais conhecido como o “pai” da chamada gastronomia molecular. O meu principal interesse neste livro estava justamente em buscar compreender melhor as bases dessa nova área de estudo, fundada no final dos anos 80 a partir da parceria entre o químico This e o físico Nicholas Kurti (já falecido).  

Dentro desse objetivo restrito, a leitura se mostrou profícua, pois o livro parece ter sido escrito exatamente para esclarecer ― por vezes de modo excessivamente didático e repetitivo ― a origem da disciplina e as questões que estão na base das inquietações intelectuais e científicas de This (e, nesse momento, é bom mencionar: o livro poderia ter sido escrito apenas por This; a co-autoria da jornalista científica Marie-Odile não parece se justificar, uma vez que traços de sua participação só são percebidos nas digressões em forma de entrevista que interrompem a fluência do texto ao longo de todo o livro.)

Definindo claramente a gastronomia molecular como uma “disciplina científica” ― e não um conjunto de técnicas culinárias ou uma filosofia gastronômica, como muitos chefs e jornalistas erroneamente a tem encarado ―,  o cientista enfatiza que a razão de ser de suas pesquisas não é inventar novos modos de se fazer comida e nem romper com o conhecimento clássico da área.  Ele busca, sim, colocar no foco da análise métodos, macetes e dogmas culinários, de modo a avaliar o quê dentro desse corpus corresponde a um conhecimento válido de ser guardado e seguido ― e o quê corresponde tão somente a “crendices”, sem qualquer embasamento científico. 

O que quer dizer que, mais do que colocar como objeto de investigação laboratorial as transformações impingidas às matérias-primas por meio das técnicas culinárias ― o que eu sempre acreditei ser a melhor definição da gastronomia molecular ― o que ele deseja é refutar o conhecimento gastronômico que se reproduz apenas pela tradição, sem que sua “verdade” (ou “falsidade”) tenham sido comprovadas pela execução metódica. 

Para ilustrar suas perspectiva e seus métodos de análise, This definiu um cardápio a ser investigado: de entrada, ovo cozido com maionese e um consomê; como pratos principais, pernil de carneiro com vagens e filé com fritas; e de sobremesa, torta de limão com suspiro e mousse de chocolate “futurista”. Em cada capítulo ele se dedica a esmiuçar as “precições culinárias” (métodos tradicionais, macetes, regras) relacionadas    ao preparo de cada um desse pratos, partindo de um determinado “ideal” a ser alcançado, propondo métodos alternativos e traçando comparações.  Em alguns casos ele conclui definindo as técnicas que, do ponto de vista físico-químico, de fato permitem alcançar o resultado almejado. Em outros, declara que nem a Ciência foi capaz de definir o melhor caminho a seguir...

E é nesse ponto que o livro decepciona.  Antes de mais nada porque muitos dos casos escolhidos para ilustrar os procedimentos de investigação da gastronomia molecular e seus resultados, já haviam aparecido em outras publicações de This ― notadamente, em O cientista na cozinha, sua primeira obra traduzida para o português. Já aparecem ali, e com muito mais detalhes, as explicações sobre o processo de cozimento do ovo, o preparo da maionese, a ciência dos assados, as claras em neve... 

A maneira com que o texto encontra-se estruturado também  é estranha e torna a leitura um tanto cansativa. Em um primeiro “nível” do texto encontra-se a “voz” de Hervé This definindo as bases da gastronomia molecular, apresentando em linhas gerais seu método de pesquisa e exemplificando-o pela análise de algumas das técnicas envolvidas nos pratos citados acima. Essa linha narrativa é entrecortada por digressões  variadas do cientista acerca do oficio de cozinheiro e do ofício de químico, a colaboração de This com o chef Pierre Gagnaire, a inovação dentro da gastronomia e até o amor na cozinha... E num terceiro “nível”, ainda, há a já mencionada entrevista de This pela jornalista Marie-Odile, que versa, também, sobre temas variados e se espalha ao longo de todo o livro: o nascimento da parceria  entre This e Nicholas Kurti, as diversas atividades empreendidas atualmente pelo primeiro, suas paixão pelas ciências e pelas letras, a cozinha molecular...

Enfim, trata-se de uma obra que pode trazer novidades a quem trava contato com a gastronomia molecular agora, e deseja começar a compreender quais são seus objetivos e métodos de análise.  Mas para o cozinheiro sério (seja ele profissional ou gourmet) que deseja absorver os resultados das pesquisas na área como ferramentas para compreender melhor seu ofício e buscar novos resultados, eu recomendo a leitura de O cientista na cozinha, obra ao mesmo tempo mais abrangente, em termos de explicações científicas, e mais focada, em termos de conteúdo.  

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