21 de outubro de 2009

Não existe percepção imaculada

Café é um dos grandes, maravilhosos sabores. Quem poderia negar isso? Bem, de fato, qualquer um ao beber café pela primeira vez poderia nega-lo. Café é uma daquelas coisas que foram denominadas aversões inatas. É amargo e sem caráter; simplesmente tem gosto ruim da primeira vez que você o encontra. Mas no momento em que você tiver bebido alguns milhares de xícaras, não poderá mais viver sem ele. Crianças não gostam dele; adultos não iniciados não gostam dele, ratos não gostam dele: ninguém gosta de café, exceto aqueles que já tomaram uma boa quantidade, e todos estes o amam.  E eles vão lhe dizer que o gosto é bom. Eles gostam de uma xícara medíocre de café, apreciam uma boa xícara de café e vão ao êxtase com uma soberba xícara de café.    (Robert Bolles, in: “Animal recognition and behaviour”, 1983, p.68)

Com perdão da minha tradução não-profissional, achei que valia a pena transcrever aqui a citação apresentada pelo sociólogo Stephen Mennell logo na introdução do livro “All manners of food”.   Além de divertida – para os que não bebem café mas, sobretudo, para os que bebem – ela define bastante bem o fato de que há algo mais envolvido em nossa apreciação dos alimentos que nosso sistema gustativo ou o sabor que eles têm. Podemos aprender a gostar de café ao longo da vida (e a maioria das pessoas que conheço levaram bem menos tempo do que isso), da mesma maneira como aprendemos a gostar de tudo aquilo de que gostamos em matéria de comida.


Em um trocadilho muito esperto, um pesquisador - o antropólogo Marshall Sahlis, se não estou enganada - escreveu certa vez que “não existe percepção imaculada”. O que ele estava querendo dizer é que é falho acreditar que nossa reação às sensações que temos (através do gosto, mas também da audição, olfato, tato e visão) possa ser uma reação “pura”, resultado direto do contato entre duas entidades apartadas: de um lado, cada um de nós e nossos corpos, de outro, os objetos do mundo que nos cerca.   No meio desta relação, por assim dizer, está necessariamente envolvida nossa cultura, que nos fornece um modo particular de interpretar o mundo.

Tratando especificamente da dimensão da alimentação, M.P. Lalonde coloca a mesma questão da seguinte forma: o gosto é menos uma questão de sensação e mais uma questão de percepção, isto é, de recepção, cognição e interpretação de estímulos (citado por Harbottle em “Food preferences and taste”, 1997).

O sociólogo Stephen Mennell relata em seu livro uma experiência interessante. A um grupo de pessoas foi fornecido cloreto de amônio. Em seguida, lhes foi solicitado preparar, a partir de substâncias salgada, ácida e amarga, um composto de sabor semelhante ao experimentado. Ocorre que os resultados foram tão díspares que os pesquisadores concluíram a dificuldade experimentada pelos participantes em perceber e reconhecer sabores com os quais não tinham familiaridade.  “As respostas quase aleatórias que as pessoas apresentam com relação a sabores não familiares neste e em experiências similares”, escreve Mennell, “sugere que o que elas experimentam não é realmente gosto, mas uma espécie de pré-gosto. Não se trata realmente de gosto até que elas tenham aprendido a interpretá-lo”.

Podemos observar o quanto nossa relação com os sabores é marcada pelo nosso pertencimento cultural de um modo mais prosaico: observando a variação histórica e cultural na maneira de os clasificarmos. Estamos acostumados a definir os sabores a partir de quatro categorias consideradas básicas : o salgado, o doce, o ácido e o amargo.  Mas se trata de uma convenção cultural, isto é, de um modo de classificar as coisas definido pela nossa cultura ocidental atual.

Na Idade Média, os diferentes alimentos eram descritos a partir de nove sabores simples : acre ou azedo, amargo, salgado, gorduroso, doce, insípido, ácido, austero e acerbo. Os japoneses acrescentam aos quatro sabores básicos do ocidente o umami, relativo ao glutamato; os chineses enumeram cinco sabores simples: o doce, o salgado, o ácido, o amargo e o acre. E os tailandeses enumeram oito: doce, salgado, amargo, ácido, apimentado ou picante, adstringente, insípido e gorduroso. 

Agora responda: você, ocidental, está acostumado a perceber, por exemplo, a adstringência nas comidas?  E o umami, você reconheceria facilmente?

Se nossas percepções são tão dirigidas culturalmente, o que dizer das preferências que assumimos a partir delas?

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