29 de janeiro de 2010

Afinando os gestos

Cozinha é artesanato. Em alguns raros momentos e contextos pode também ser arte. Mas no dia a dia de um restaurante, naquelas longas horas que passamos de pé em frente a bancadas e tábuas, o que fazemos é artesanato. E essa afirmação não implica em uma diminuição do valor do trabalho do cozinheiro; é apenas o reconhecimento de que o que fazemos tem a ver com técnica, com perícia, com sensibilidade... e com repetição, muita repetição.

Na realidade, essa repetição foi uma das coisas que mais me atraíram no trabalho em uma cozinha profissional. Porque é através dela que vamos doutrinar nossos gestos, educar nossos corpos para a adequada realização do objetivo final de todo aquele esforço - quer ele seja uma clássica salada niçoise, um substancioso cassoulet ou uma delicada torta de damascos frescos.

Repetir as mesmas receitas dia após dia pode ser maçante; em especial depois que se passa a conhecê-las de cor e salteado. Mas pode ser também uma bela oportunidade para um processo de auto-aperfeiçoamento - basta mudar a maneira de encarar a repetição. Eu, confesso, sou uma perfeccionista de carteirinha, então gosto de tentar observar o que ainda pode ser melhorado naquilo que faço e o quanto de progresso já fiz desde que comecei a produzir uma dada receita.

Um prato é um trabalho permanentemente em aberto no sentido de que sempre há algum detalhe a ser melhorado. E eu não estou falando em alterar a receita (até porque, sou apenas uma cozinheira, e não uma chef; como tal, a mim cabe apenas executar muito bem o que me é pedido). Eu estou me referindo a afinar cada vez mais os mínimos aspectos que concorrem para o resultado final - um corte de uma fruta, a maneira de misturar o creme, a arquitetura da montagem no prato.

É a repetição que nos coloca, permanentemente, essa oportunidade. O mesmo, creio, ocorre com o ator de teatro, que busca sempre apresentar uma performance melhor a cada espetáculo, mesmo repetindo as mesmas falas, três ou quatro vezes por semana, durante meses (ou anos) a fio. A única diferença é que o nosso "espetáculo" acontece todos os dias, e várias vezes em um mesmo turno.

Há ainda um outro aspecto a considerar. É somente na repetição que reside a possibilidade de adestramento corporal - de aquisição do "domínio do gesto", como escreveu Laurent Suaudeau no imprescindível "Cartas a um jovem chef". Como artesanato que é, o ofício da gastronomia demanda gestos precisos para uma execução dentro dos padrões buscados. É preciso saber segurar a faca corretamente e posicioná-la e movimentá-la de modo adequado em relação à cenoura, para se conseguir uma brunoise. Também é preciso saber movimentar o fouet de um modo específico ao bater as gemas para se obter um sabayon.

Embora possamos ler sobre esses procedimentos em livros ou assistir aos chefs famosos fazendo isso na televisão, é na prática que o conhecimento teórico se naturaliza e se transforma em gesto. Em outras palavras, é preciso que aquele conhecimento se entranhe no corpo para que deixemos de pensar nele - e não pensando, consigamos executá-lo naturalmente. Só que isso não acontece de imediato - pelo menos, não para a maioria das pessoas. É preciso repetir e repetir e repetir. E repetir, se possível, com a supervisão de quem já sabe fazer.

Tentando traçar um paralelo, é como aprender a dirigir. Das primeiras vezes em que pegamos um carro, antecedemos cada gesto com a avaliação consciente do que devemos fazer a seguir - se eu vou entrar na próxima rua à direita, algum tempo antes tenho que pisar no freio e reduzir um pouco a velocidade, em seguida pisar na embreagem e mudar de marcha e, ao mesmo tempo, dar a seta. Com o tempo e a prática, continuamos a realizar os mesmos movimentos, os mesmos gestos, mas sem a necessidade de parar para pensar neles antes. Apenas fazemos o que temos que fazer.

O único risco que traz a repetição ilimitada é o da acomodação - e, como sempre diz o meu chef, "o cozinheiro jamais deve se acomodar!". Até por isso, é bastante saudável a renovação periódica no receituário de um restaurante e/ou a troca de funções dos cozinheiros, como acontece em muitas casas. Assim, renovam-se os desafios e amplia-se a possibilidade de aquisição de novos conhecimentos, técnicas e gestos.

foto: Keiko Oikawa - http://www.nordljus.co.uk

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