24 de março de 2012

Pensando a alimentação na História

Algumas vezes, ao princípio de um curso de História da Alimentação, alunos de gastronomia me perguntam sobre a origem deste ou daquele prato, em homenagem a quem o molho Béchamel foi batizado ou se o macarrão foi mesmo levado para a Itália da China, por Marco Polo.
Ao longo do curso essas perguntas tendem a se reduzir, ou a serem reformuladas a partir de outras perspectivas de interesse, mais abrangentes. E não por acaso.
Como bem colocou Jean-Louis Flandrin na introdução do obrigatório História da Alimentação (1998), uma certa história da alimentação, calcada na busca de inventores e datas de invenção de todos os alimentos e pratos “que fazem a glória de nossas cozinhas”, faz parte da cultura de base de todos. O problema, segundo ele, é que “a este tipo de história, que é contada com toda a segurança dos lugares-comuns, pouco importam os documentos que a contradizem.” E estes nos informam hoje, por exemplo, que as massas italianas não vieram da China nem chegaram através de Veneza, tendo se difundido, sim, a partir do Mezzogiorno, onde já eram conhecidas antes da viagem de Marco Polo ao Oriente. Contada assim, talvez a história não pareça tão interessante quanto a que inclui o navegador veneziano...



Mas há ainda um segundo problema. Vasculhar a história a partir daquele ponto de vista redutor significa encontrar um panorama fragmentado, uma história contada através de muitos “caquinhos”, e que não faz jus à tessitura sócio-cultural que, de fato, envolve essas ínfimas passagens relativas a criadores e criaturas.
Ao pensarmos a alimentação em termos de processos de mudança, não faz sentido nos remetermos apenas aos chamados “mitos de origem” deste ou daquele prato, ou deste ou daquele utensílio de cozinha. Mais rico é observarmos as práticas alimentares e tudo o que as compõem – ingredientes culinários, utensílios e equipamentos de cozinha, receitas, regras à mesa etc. – dentro de seu contexto econômico, político e cultural, como uma parte representativa destes, ao mesmo tempo que plena de significados próprios.
A tarefa não é simples, mas tenho buscado apresentar aos meus alunos de gastronomia a alimentação a partir de uma perspectiva mais multifacetada, embasada em diferentes planos. De princípio, uma outra dificuldade se impôs: definir o que é a “alimentação” e o que nossos olhos estarão buscando exatamente ao escarafunchar os modos alimentares ao longo do tempo. Como o aposto do parágrafo acima já indica, as práticas alimentares são constituídas por múltiplos aspectos. Podemos observar os ingredientes utilizados, tentar imaginar os sabores resultantes, analisar os equipamentos de cozinha disponíveis em cada momento, as regras de comportamento à mesa ou mesmo o aparato utilizado durante o consumo, como mesas, cadeiras, louças, talheres etc.
São muitos os caminhos de pesquisa possíveis e, novamente, para não cair no risco da observação fragmentada, é preciso buscar um meio de integrá-los. Nesse sentido, considero um recorte valioso o da culinária entendida como um conjunto de:

representações, crenças e práticas que lhe são associadas e que são partilhadas por indivíduos que fazem parte de uma cultura ou de um grupo no interior desta cultura. Cada cultura possui uma cozinha específica, que implica classificações, taxonomias particulares e um conjunto complexo de regras relacionadas não somente à preparação e à combinação de alimentos, mas também sobre sua seleção e consumo. Ela possui igualmente significações, que são estreitamente dependentes da maneira com que as regras são aplicadas.” (Fischler, 2001, p.32)

Avançando um pouco mais, podemos pensar a culinária – a partir da trilha aberta por Lévi-Strauss – como uma linguagem, onde podemos discernir vocábulos (produtos, ingredientes), organizados segundo regras de gramática - as receitas -, de sintaxe - o cardápio -, e de retórica - os comportamentos do convívio (Montanari, 2009). Cada um dos elementos desse sistema apresenta um papel diferenciado dentro dele, com graus de estabilidade ou continuidade também diferenciados.
Como exemplifica Fischler (2001), estudos etnológicos de populações migrantes mostram que após a chegada em uma nova sociedade, os imigrantes conservam em larga medida sua culinária (seu sistema, sua linguagem), sendo que alguns aspectos dentro desta, como certos pratos, acabam por ganhar uma dimensão cultural inteiramente nova. Convertem-se nos chamados “pratos-totêmicos” ou seja, pratos-símbolo da identidade daquele povo, a serem exibidos como reafirmação de sua origem. Por outro lado, também ocorrem, quase sempre, mudanças por meio de processos de substituição ou adição de novos elementos dentro do sistema, sob a forma trocas de ingredientes da cultura de origem por outros pertencentes à nova cultura ou da justaposição de novos produtos aos antigos.
E, ainda, a própria sintaxe culinária pode mudar para acomodar novos ingredientes ou preparos, como vemos facilmente em restaurantes de especialidades estrangeiras onde pratos que em sua origem pertenciam a um dada categoria (um risotto, primeiro prato na cultura italiana, por exemplo) passam a ser consumidos de modo diferenciado, ao sabor da cultura local (como uma guarnição, caso bastante comum no Brasil, onde vem a ocupar no sistema culinário o mesmo lugar tradicionalmente ocupado pelo arroz branco comum).
Dissecar analiticamente os constituintes de um linguagem culinária é apenas uma parte do processo de pesquisa. Significa obter uma fotografia (algo complexo, mas estático) de um quadro cultural em permanente mutação. Cada um dos constituintes da culinária – quer seja seu vocabulário, sua gramática ou sua sintaxe – constitui-se e transforma-se no seio de cada sociedade e cada cultura, ao sabor de mudanças econômicas, sociais, tecnológicas, ecológicas, simbólicas. Como escreveu Flandrin “as estruturas do cotidiano deixam-se surpreender pela história” (1998, p.17). E é certamente muito mais rico observar a história da alimentação sob esse prisma complexo e multifacetado, do que como um apanhado superficial de nomes, datas e preparos sem contexto. 

2 comentários:

  1. Oi adorei seu textos sobre a alimentação.. na verdade, eu esbarrei em seu site buscando alguma coisa que esqueci quando comecei a ler seu texto. Na verdade, o que mais me chamou a atenção foi o seu caminho acadêmico e como ando enlouquecida para entra em uma pós em antropologia social em gastronomia.. Sou jornalista também. Enfim. Reduzindo o papinho de "eu quero seguir seus passos", gostei bastante daqui e virei mais vezes para aprender um pouco mais em seu espaço.

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  2. Olá, Andréa.
    Obrigada pelos comentários!

    A perspectiva cultural sobre a alimentação é um campo de estudos bem recente - mais ainda aqui no Brasil, onde são poucas as pessoas que pesquisam sistematicamente na área. Como os (também) poucos cursos de pós-graduação em gastronomia existentes focam muito mais nas artes culinárias do que no estudo histórico/sociológico/antropológico (que parece ser o seu interesse), sugiro buscar uma pós-graduação em uma destas três áreas e lá buscar um professor que aceite te orientar em uma pesquisa em alimentação. É o que venho fazendo.

    Bem vinda ao blog e bem vinda ao "clube"! : )

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