21 de outubro de 2009

Comer para tornar-se aquilo que se deseja ser – o princípio da incorporação na alimentação

No texto anterior, falando sobre os aspectos culturais e sociais que nos levam a desenvolver preferências por certos alimentos, em detrimento de outros, mencionei o que o antropólogo francês Claude Fischler chama de princípio da incorporação: a associação entre os alimentos e certas idéias, que nos leva a acreditar que seu consumo associe também a nós suas “qualidades” sociais e morais.

Coloquei como exemplos (ainda seguindo Fischler), os diferentes valores associados ao caviar e ao tomate, valores que certamente têm algo a ver com a freqüência, as situações e os modos de consumo de um e outro (sim, a questão do preço também tem a ver com isso, mas se partirmos do princípio de que o valor monetário também se sustenta, dentre outros fatores, pelo valor simbólico, então podemos retornar à discussão, deixando o lado econômico da questão para outro momento). Acho que é interessante persistir um pouco no tema, para esclarecer as implicações contidas na afirmação de Fischler. 

Pois bem, comecemos pela idéia, dificilmente discutível, de que todo alimento tem algum tipo de efeito sobre o corpo, seja ele bom ou ruim. Hoje, quando falamos em alimentação funcional, estamos ecoando uma idéia muito antiga, já presente na Grécia dos tempos pré-Cristãos, na ideologia médica sustentada por Hipócrates. Segundo ela, podemos (e devemos) fazer de nossos alimentos um meio de tratar o corpo. Mas mesmo se não tivermos como proposta a “medicalização” da alimentação, ainda assim não nos custa muito considerar que tudo aquilo que ingerimos terá algum efeito sobre nosso organismo, seja do ponto de vista nutricional, seja do ponto de vista estético. 

O que Fischler busca ressaltar, no entanto, é que o princípio de incorporação não se dá apenas no nível real; dá-se também no nível do imaginário. Uma representação bastante comum, observável em diferentes culturas é a de que o alimento absorvido é capaz de, simbolicamente, modificar o estado do organismo em sua natureza, isto é, de modificar sua identidade. Uma ilustração bem simples pode ser encontrada no pensamento de sociedades simples, como as estudadas ainda no século XIX pelo antropólogo James Frazer: “o selvagem” escreveu ele, “crê comumente que, ao comer a carne de um animal ou de um homem, adquire as qualidades não apenas físicas, mas  morais e intelectuais, características deste animal ou deste homem.”
 
Frazer assinalou que, em certos grupos, os guerreiros se abstinham de comer lebre ou porco espinho (animais considerados medrosos) por medo de perder sua coragem, enquanto as mulheres grávidas se abstinham de comer determinadas espécies que poderiam “contaminar” sua prole. O canibalismo também poderia ser explicado pela presença da mesma lógica: come-se o inimigo morto para se apropriar das características da vítima (exo-canibalismo), come-se um ente do mesmo grupo, para mantê-lo vivo através do corpo de outro (endo-canibalismo)...

Mas não estaria este tipo de crença restrita a mentes supostamente “primitivas” ou pouco educadas? Fischler demonstra que não, descrevendo uma experiência bem simples realizada pelo psicólogo Paul Rozin com estudantes norte-americanos.  Os jovens foram divididos em dois grupos e a cada um deles foi dado um texto a respeito de uma tribo primitiva (que eles não sabiam ser fictícia).

Os dois textos apresentavam uma única diferença na descrição das tribos: a tribo apresentada ao primeiro grupo caçava e consumia tartarugas marinhas e apenas caçava, por razões de defesa, javalis. Já a segunda tribo fazia o oposto: caçava e consumia javalis enquanto das tartarugas aproveitava apenas a carapaça.  Pois bem, ao verem-se diante da tarefa de ter de atribuir características e traços de personalidade aos membros de cada uma das tribos, os jovens atribuíram à primeira tribo características de tartaruga (tranqüilidade, habilidade para o nado) e à segunda, qualidades de javali (rapidez, agressividade).

Para Fischler, a representação da incorporação traduz, na realidade, uma característica essencial da relação entre o homem e seu corpo: a que funda a tentativa, constante na maioria das culturas, de dominar o corpo e, através dele, o espírito, a pessoa e a identidade. Cada incorporação, simbolicamente, implica ao mesmo tempo uma possibilidade e uma esperança: tornar-se aquilo que se é ou aquilo que se deseja ser (jovem, bonito,  bem sucedido, desencanado, de bem com a vida, refinado etc.) e, assim, marcar a identificação com relação a alguns grupos e a diferença com relação a outros.

Este tipo de associação entre objetos e idéias, consumo e identidade, não se encontra apenas em nossa relação com os alimentos - ela existe em qualquer tipo de consumo, e a vestimenta é também um bom exemplo. Contudo, ela é especialmente presente no comportamento alimentar pelo fato de que nele a incorporação não é apenas simbólica, é também literal.

Um comentário:

  1. Toda noite depois do trabalho to lendo um poquinho dos seus textos... To adorando! Você vai ganhar um amigo professor um dia desses, gostei muito da idéia!


    um bj

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