14 de abril de 2010

Alguns apontamentos sobre a formação do gosto

Há bastante tempo não posto aqui textos de discussão teórica. Resolvi retomar a vertente, ao mesmo tempo em que retomo meus projetos de pesquisa sobre cultura e gastronomia. 

Há muitos focos de investigação que me interessam dentro do vasto campo de interseção entre esses dois "universos". O que mais me intriga é a questão da formação do gosto. Pela complexidade desse objeto, a postura de investigação não pode ser outra que a multidisciplinar - tal como proposto por Fischler - e, exatamente por isso, essa investigação (ainda que, primariamente, num nível teórico) tem se mostrado tão rica quanto difícil...

Enfim, numa tentativa de encontrar mais interlocutores interessados nessa discussão e com diferentes visões,  decidi postar aqui trechos de dois textos meus. O primeiro é parte da introdução da minha dissertação de mestrado, defendida no programa de pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS em 2006 (o objeto de pesquisa em questão era um grupo de degustadores amadores de vinhos, na cidade de Porto Alegre). O segundo é parte de um artigo apresentado na Reunião de Antropologia do Mercosul, em 2007, intitulado "A experiência sensorial na degustação de vinhos: treinamento dos sentidos, discurso e contrução de gosto". 

Afora as datas em que foram escritos, os dois textos estão separados também por uma sutil mudança de perspectiva, empreendida como um desafio proposital de revisão dos dados da pesquisa de mestrado a partir de novas fontes teóricas.


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Por que comemos o que comemos?

A julgar pelo senso comum não há apenas uma, mas várias explicações possíveis. Aquela que deposita as escolhas alimentares no arbítrio individualista do “gosto” provavelmente é a mais disseminada. Comemos, afinal de contas, aquilo de que gostamos; assim como não comemos o que não gostamos. E gostamos, parece ainda mais óbvio, daquilo que nos é agradável ao paladar.

Tal consideração aponta simultaneamente para dois aspectos. Em primeiro lugar, como já observou o antropólogo Claude Fischler (2001), para o consumidor em geral é difícil não acreditar ser o gosto dos alimentos — entendido, essencialmente, como o conjunto de suas qualidades gustativas — o fator que atua, primordialmente, sobre a definição de suas preferências.

Em segundo lugar, e ligada ao ponto anterior, está a crença de que tais preferências dizem respeito exclusivamente ao indivíduo, considerado isoladamente. “One man’s meat is another man’s poison”, “Chacun à son goût”, “gosto não se discute”; quem já não ouviu ou proferiu esse tipo de asserção? Mesmo que possam ser tomados como sintomas de uma perspectiva individualista predominante no pensamento moderno, como aponta o sociólogo Stephen Mennell (1996, p.1), esses ditos populares não deixam de ter uma certa dose de razão. Mas até que ponto?

Empiricamente, sabemos que as pessoas têm inclinações particulares quando se trata de escolher o que preferem comer ou beber e que, em alguma medida, tais inclinações se ligam às impressões provocadas pelas propriedades sápidas dos alimentos em seus sentidos. Que a aptidão para sentir e discriminar esses estímulos possa variar consideravelmente de indivíduo para indivíduo é constatação, inclusive, já bem sedimentada no corpus do estudo da fisiologia humana. (CHIVA, 1979).

Todavia, isso parece explicar pouco. Se por um lado não foi comprovada a existência de uma relação direta e unívoca, vinculada a qualquer “lei geral”, entre o limiar perceptivo individual e o estabelecimento de “preferências” (CHIVA,1979), por outro, restaria esclarecer como grupamentos humanos inteiros desenvolvem preferências e aversões comuns por determinados alimentos.

Como já foi demonstrado em outros lugares (FISCHLER, 2001; MENNELL, 1996), o recurso exclusivo a explicações de cunho ecológico ou econômico — vinculadas, em última instância, à questão do acesso diferenciado que os grupos populacionais ao redor do globo têm aos variados tipos de alimento — também não é suficiente para esgotar a questão. Se é verdade que não podemos apreciar aquilo que não conhecemos, e que tendemos a preferir aquilo que nos é familiar, também é verdade que não comemos tudo o que se encontra à nossa disposição e que, por vezes, podemos desenvolver marcada atração por ingredientes raros e bem pouco acessíveis.

Podemos concluir que a alimentação humana é um fenômeno suficientemente complexo para se deixar explicar de modo mais profundo por perspectivas restritivas e excludentes. Enfoques parciais somente podem encontrar repostas também parciais; e não surpreende que abordagens disciplinares diversas consideradas isoladamente tendam a encontrar mais zonas de sombra, enquanto buscam iluminar os fatos (FISCHLER, 2001).

Em boa parte, tal complexidade se deve à condição de a alimentação ser, a um só tempo, uma necessidade fisiológica e um ato social e, portanto, estar imiscuída simultaneamente nas dimensões da biologia e da cultura, do indivíduo e da sociedade: "Respondendo às exigências do corpo, e determinada nos seus modos pela maneira particular pela qual, aqui e ali, se efetua a inserção do homem no mundo, colocada portanto entre a natureza e a cultura, a cozinha representa acima de tudo a necessária articulação entre ambas. Ela depende de dois domínios, e projeta este desdobramento sobre cada uma de suas manifestações" (LÉVI-STRAUSS, 1968, p.33).

Sem qualquer intenção de dar conta, aqui, da questão das preferências alimentares de um modo abrangente — embora, como esperamos ter deixado claro, reconhecendo a importância de se considerar as diferentes abordagens como necessariamente complementares — , propomos que um entendimento mais acurado sobre esse aspecto não pode ser alcançado sem que se leve em conta as pressões simbólicas exercidas sobre ele. Como observa o antropólogo Igor de Garine (1997, p.188), “preferências em termos de comida e sabor são adquiridas dentro de um recorte cultural”, ou seja, sob a chancela de um sistema de atribuição de valor que é culturalmente construído e partilhado.

O que esse tipo de consideração busca colocar em foco é o fato de que as qualidades que costumamos atribuir aos diferentes ingredientes, modos de preparo, pratos ou bebidas, quando chamados a justificar nossas escolhas, podem não estar exatamente aonde acreditamos que estejam: em suas propriedades (ou vantagens) “concretas” — nutricionais, gustativas, olfativas, estéticas etc. — per si. Podem estar em um sistema de representações acerca desses mesmos ingredientes, modos de preparo, pratos ou bebidas — ou acerca exatamente de suas propriedades nutricionais, gustativas, olfativas, estéticas — que nós, como membros de uma cultura, necessariamente subscrevemos.

Isto não quer dizer que se possam tomar como dimensões inteiramente apartadas as considerações simbólicas e as sensações fisiológicas envolvidas na conformação das preferências e aversões alimentares. O gosto individual encontra-se ligado àquele do grupo em que se é socializado, pois aprendemos a saborear — tal como aprendemos a ver, sentir, ouvir e tocar — de uma maneira específica de acordo com a sociedade, ou grupo dentro da sociedade, a que pertencemos. Podemos, portanto, considerar a hipótese proposta por Garine (1997) de que exista, em cada cultura (ou subcultura), alguns consensos mais ou menos explícitos em relação a preferências alimentares e gostos mais prazerosos.

A cultura não sanciona apenas aquilo que é bom para comer; mas também como devemos comê-lo. As representações construídas em cima de um determinado alimento remetem tanto a características gustativas e estéticas quanto a técnicas de preparo, estratégias de compra, modos e ocasiões de consumo. Conforme esclarece Fischler (2001, p.81), os alimentos "são utilizados em conformidade às representações sociais e usos compartilhados pelos membros de uma classe, grupo ou cultura; a natureza da ocasião, a qualidade e o número de convidados, o tipo de ritual em torno do consumo, constituem elementos ao mesmo tempo necessários, significantes e significativos."

O que essa observação aponta, e é importante reforçar, é que a construção simbólica envolvida na atribuição de valores aos alimentos não se dá isoladamente; ela encontra-se profundamente entrelaçada à atribuição de valores às condutas, às pessoas e aos inúmeros elementos que podem compor cada ocasião de consumo. Em verdade, sendo ao mesmo tempo significantes e significativos, esses diversos aspectos, quando justapostos em um mesmo contexto, agem reforçando-se mutuamente. Tentar decifrar o “significado” de um alimento — ou, como propõem Douglas e Isherwood, de qualquer bem de consumo — isoladamente, isto é, fora do processo social, seria inútil; ele é construído e somente pode ser apreendido dentro de seu “espaço de significação” (DOUGLAS; Isherwood, 2004).

O que nos leva, finalmente, a considerar a função comunicativa da comida. Como propôs Douglas (1971; 1977; 1982), a partir de idéia seminal de Lévi-Strauss (1968; 2004), o fato de os alimentos (e os bens de consumo) comportarem idéias e valores que lhes são externamente imputados e que são socialmente atribuídos e socialmente reconhecidos, lhes faculta a possibilidade de servir como suporte para idéias que de outro modo dependeriam da linguagem verbal para serem comunicadas. “Para continuar a pensar racionalmente, o indivíduo precisa de um universo inteligível, e essa inteligibilidade precisa ter algumas marcas visíveis. Conceitos abstratos são sempre difíceis de lembrar, a menos que assumam alguma aparência física” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p.28).

Emprestando, por assim dizer, essa aparência física que falta, os bens funcionam como marcadores das categorias racionais, fazendo “afirmações físicas e visíveis sobre a hierarquia de valores de quem os escolheu” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p.28). Tais afirmações ficam assim disponíveis para serem lidas por aqueles que conhecem o código.

Observar as preferências e escolhas de um determinado comensal, ou de um grupo de comensais, pode ser, portanto, uma importante via de acesso aos valores gerais acionados por eles em sua vivência cotidiana.

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O que é o gosto?
 
A ambigüidade das palavras taste e goût (respectivamente nas línguas inglesa e francesa) e as dificuldades que essa ambigüidade acarreta para sua discussão teórica, têm sido apontadas por diferentes autores (Fischler, 2001: p.89; McBeth, 1997: p.2). Em português, a dificuldade é a mesma, assim como a variedade de acepções encontrada na linguagem corrente, que abrange desde o “sentido do paladar” e a “sensação gustativa característica de determinadas substâncias”, isto é, o sabor, até uma “capacidade de apreciação crítica e subjetiva”, que opera não apenas na definição de preferências no domínio da alimentação, mas também em todo e qualquer discernimento estético (segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa).

Mesmo que nos atenhamos à definição do gosto enquanto paladar ou enquanto um princípio de conformação de preferências estritamente alimentares, as dificuldades para sua operacionalização são ainda grandes. No primeiro caso, porque as sensações ordinariamente associadas ao paladar envolvem de fato bem mais do que a aptidão para sentir e discriminar os estímulos provocados pelo sabor dos alimentos na língua. Elas são o resultado de uma combinação complexa de informações que envolve concomitantemente a olfação, a percepção térmica, a estereognosia bucal e a percepção de texturas (Chiva, 1979: p.107). Tentar definir o gosto apenas sob a perspectiva da gustação e da resposta às categorias básicas de sabor (salgado, doce, amargo ou ácido) significa, portanto, empreender uma redução considerável.

No que diz respeito à segunda definição, é preciso considerar que a discriminação de preferências (e aversões) envolve simultaneamente reações bioquímicas e posturas com relação a essas reações (McBeth, 1997: p.2) ou, em outras palavras, “julgamentos” por parte do sujeito com relação ao que é experimentado (Fischler, 2001: p.90). Experiências com recém-nascidos, no campo da psicologia experimental, demonstraram o quão rapidamente as reações puras de agrado/desagrado provocadas pela estimulação gustativa inscrevem-se no contexto relacional e social do indivíduo, assumindo valores e tomando parte no sistema de comunicação entre o bebê e o grupo social que o cerca (Chiva, 1979).

Pesquisadores e teóricos do campo das ciências sociais e humanas têm se dedicado exatamente a tentar deslindar as complexas articulações entre indivíduo, sociedade e cultura, que encontram-se na base do comportamento alimentar humano. Algumas das explicações mais influentes que tentaram dar conta das diferentes escolhas, evitações e preferências observadas nas diferentes sociedades, apoiam-se sobre a idéia de um sistema de regras e classificações, ou uma estrutura de significados, atuante sobre a seleção dos alimentos e a avaliação de suas propriedades, sobre as possibilidades de combinação e preparo, sobre a escolha dos instrumentos utilizados, os modos de servir e as formas e contextos de consumo (Lévi-Strauss, 1965; Douglas, 1977; Barthes, 1979).

A despeito do enorme valor dessas investidas, sob inúmeros aspectos, pouco elas tiveram a contribuir para a compreensão dos processos de gênese ou transformação nas preferências (como destaca Mennell, 1996: p.6-15), bem como sobre as imbricações entre a interpretação cultural e a percepção sensível envolvidas neles. Com relação a este último aspecto, vale destacar as noções de habitus e gosto trabalhadas por Bourdieu (1984), uma vez que apresentam uma tentativa, como aponta Csordas (1988: p.10), de colapsar a dualidade corpo/mente.

O habitus é definido pelo sociólogo francês como um princípio unificador e gerador de práticas e representações que, enraizado nas condições objetivas de existência, é capaz de gerar tanto práticas significativas quanto percepções significantes. Estreitamente relacionado a ele, o gosto individual assume a forma de uma cultura de classe corporificada (“embodied”), expressão de uma certa habilidade discriminante (a um só tempo estética e simbólica) que vai projetar sua influência ao longo de toda a vida do sujeito e em diferentes domínios  dentre eles o da alimentação.

Contudo, é particularmente em sua projeção sobre o domínio alimentar que a mecânica de definição de gostos proposta por Bourdieu abre espaço para algumas críticas. Fischler (2001) chama a atenção para dois aspectos. Em primeiro lugar, para o fato de que, na construção teórica bourdiana, o gosto é definido sobretudo dentro de uma perspectiva de transmissão e reprodução, que parece não admitir qualquer possibilidade de mudança desvinculada de uma mobilidade social individual ou da transformação na composição social.

Em segundo lugar, está o fato de que Bourdieu toma como princípio a visão do senso comum de que a família e a educação constituem os principais fatores na gênese e transmissão dos gostos alimentares. Por mais que seja bem comprovada a importância do contexto familiar e de sua cultura no recorte do repertório alimentar do indivíduo, Fischler esclarece que os conhecimentos atuais sobre a variação nas preferências, nas diferentes fases da vida, apontam não só para a provável inexistência de um efeito de “impressão precoce” sobre o gosto, como para uma forte plasticidade desse gosto frente a diferente tipos de interação social (Fischler, 2001: p.100).

Podemos agora esclarecer que, neste trabalho, nosso interesse se direciona exatamente para essa possibilidade de remodelação das preferências individuais, bem como para as articulações entre a dimensão sensível e a dimensão intelectual ou simbólica, e entre a experiência individual e os valores coletivos. Em outras palavras, partimos do princípio de que o gosto abrange tanto a sensibilidade quanto princípios de classificação, e que ambos encontram-se em permanente reconstrução, no nível individual e no nível coletivo.


Continua no próximo post...


Referências bibliográficas:

BARTHES, Roland. Toward a Psychosociology of Contemporary Food Consumption. In: Forster e Ranum (eds.) Food and Drink in History. Baltimore: John Hopkins University Press, 1979, p.166-73.

BOURDIEU, Pierre. Distinction: A Social Critique of the Judgement of Taste. Londres: Routledge, 1984.

CHIVA, Matty. Comment la personne se construit en mangeant. In: Communications, n.31, 1979.

CSORDAS, Thomas. Embodiment as a paradigm for Anthropology. In:Ethos,18: 5-47, 1988.

DOUGLAS, Mary. Culture. Structures of Gastronomy. In: Russell Sage Foundation. The Future and the Past: Essays on Programs and the Annual Report 1976-1977. Nova York: Russell Sage Foundation, 1977.

DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

GARINE, Igor de. Food preferences and taste in an African perspective. In: MacBeth, Helen. (org.). Food preferences and taste: continuity and change. Oxford, Providence: Berghahn, 1997.


LE BRETON, David. La Saveur du monde: une anthropologie des sens. Paris: Métailié, 2006.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Triângulo Culinário. ARC, n.26, 1965.

MENNELL, Stephen. All manners of food: eating and taste in England and France from Middle Ages to the present. Chicago: Illini, 1996. 


MACBETH, Helen (org.). Food preferences and taste: Change and Continuity. Oxford: Berghahn, 1997.

4 comentários:

  1. Um dia ainda quero ler esse trabalho completo... Gostei muito!

    Ps: to indo assaltar a geladeira.

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  2. Muito bom! Como obtenho sua tese? Carlos Dória

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  3. Fico muito feliz com o interesse! A dissertação está disponível no repositório digital da UFRGS: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/1. Basta digitar o meu nome no campo "autor" e o ano de publicação, que é 2006. Caso tenham algum problema para acessar, me avisem.

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  4. Ei patricia meu nome é Samira e tem uma frase do seu trabalho que eu gostaria de citar na minha dissertação. Isso é um artigo? Porque na sua dissertação nao encontrei.
    Me escreva: samiracfs@gmail.com
    Obrigada
    Samira

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